Lagoas aterradas e morros esmontados foram a tônica de sua história. E é sobre estes desmontes que iremos conversar hoje.
Um Rio de desmontes
O primeiro relato que inaugura a sucessão de derrubadas vem lá do final do século XVIII. Na época, onde hoje está o Passeio Público, existia a Lagoa do Boqueirão, que foi aterrada por conta das epidemias provenientes da grande quantidade de mosquitos que ali viviam, aliado ao mau cheiro, já que a região recebia os dejetos dos moradores do entorno. Para aterrar a lagoa, foi derrubado o Morro das Laranjeiras, que ficava para os lados da Lapa. Dele pouco se sabe. Mas veio abaixo, assim como vários outros, inaugurando uma prática que iremos encontrar pelo menos três outras vezes no Centro da cidade.
Lagoa do Boqueirão - Acervo Musel Histórico Nacional
O Morro do Senado, demolido no final do século seguinte ( entre 1880 e 1906 ) é outro exemplo. Parte do material retirado foi levado para a boca do Canal do Mangue, e serviu para aterrar as ilhas que ali existiam, como a dos Melões e a das Moças, que ficavam aonde hoje está a Rodoviária Novo Rio. Toda aquela região, uma sucessão de enseadas e ilhotas, foi colmatada e deu origem ao porto da cidade. Numa segunda rodada de demolições, a segunda parte do material foi depositado no entorno da Glória, e deu origem à Avenida Augusto Severo, que deu fim a várias praias que existiam na região. Não podemos esquecer que o litoral beirava o Passeio Público, a Lapa ( por trás da Igreja ) e ia até a Glória, beirando o Outeiro da Glória.
Morro do Senado - Juan Gutierrez - Museu Histórico Nacional
Com a demolição do Morro do Senado foi possível unificar a Rua do Senado, que tinha dois trechos descontínuos: um deles vinha do Senado da época ( no prédio da Faculdade de Direito da UFRJ, o Caco, nas proximidades do Campo de Santana ), era interrompido pelo morro, e recomeçava na rua Pedro I, indo até a Praça Tiradentes. Unificada a rua, surgiu no local aonde ficava o morro, a Praça da Cruz Vermelha e todo o arruamento ao redor.
Outro processo de desmonte, e este bem mais famoso, foi o do Morro do Castelo. Ocorrido no início da década de 20, sob o argumento de que aproximavam-se as comemorações pelo entenário da Independência do país, o morro, que sofria a pecha de que impedia que os ventos que vinham do mar chegassem ao Centro da cidade, e era o culpado das epidemias frequentes, que manchavam a imagem da cidade no exterior, era formado por material sedimentar e foi demolido sob força hidráulica: as águas da Baía de Guanabara eram bombeadas e usadas para soltar os sedimentos, que foram aos poucos depositados na região onde hoje está o Aeroporto Santos Dumont e todo o entorno, que inclui a região de prédios onde está a Santa Casa da Misericórdia e a Igreja de Santa Luzia. No lugar da elevação, surgiu a Esplanada do Castelo, ocupada nas décadas seguintes, especialmente no período do governo Vargas, quando foram levantados os prédios do Ministério da Fazenda e do Trabalho.
Morro do Castelo em seu momento de demolição
Para terminar nossa lista, temos o Morro de Santo Antônio, o último a vir ao chão. Ali ficavam, não só o Convento de Santo Antônio e a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco. O morro era habitado, e a população que ali vivia, carente. O desmonte ocorreu na década de 50, e o material dele proveniente foi usado para a construção do Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, que nós conhecemos como Aterro do Flamengo. O morro não foi totalmente demolido: o Convento e as duas igrejas, de Santo Antônio e São Francisco da Penitência, continuam lá. No lugar do desmonte foi construída a Avenida Chile, onde hoje estão inúmeros prédios empresariais, como o da Petrobrás e o do BNDES, e a Catedral Metropolitana.
Desmonte Morro de Santo Antonio - Augusto Malta - 1921- Arquivo da Cidade
Morro de Santo Antonio
Estudando a cidade, terminei por criar uma frase para o Rio de Janeiro: aqui, nada é o que parece. Pesquisando a sua história, percebemos o quão humanizada a paisagem da cidade é. A mão e a engenhosidade humana fazem o Rio que conhecemos hoje.