Por que, sempre, é do corpo da mulher que se trata?
Por que, ainda é tão crucial manter o controle sobre o corpo feminino, em pleno século 21, quando se fala no empoderamento da mulher? Não é preciso ser vidente para pensar que o aborto, mais uma vez, vai despontar nas eleições de 2018, e será usado pelos políticos em campanha, como instrumento de barganha para o apoio e o voto religioso.
A questão do aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país. O assunto só aparece como instrumento de chantagem na busca inescrupulosa por todo o apoio possível, nesse caso o voto religioso. Tanto é, que nos últimos anos, o tema se tornou uma moeda de barganha eleitoral. Na verdade, barganham com a vida das mulheres pobres, que dependem do SUS. E parece ser um esporte lucrativo, tanto nas eleições quanto nos corredores do Congresso.
A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal
Em 2013, grupos evangélicos e também católicos, como o Pró-Vida e Pró-Família, ameaçaram Dilma Rousseff com a retirada de apoio na reeleição, alegando que ela estaria, “na prática, legalizando o aborto no Brasil”. Dilma Rousseff havia acabado de sancionar sem vetos a lei, aprovada pela Câmara e pelo Senado, que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Entre outros direitos, a mulher que sofre estupro pode obter na rede pública a chamada pílula do dia seguinte, para não correr o risco de engravidar do estuprador. Era sobre isso que grupos religiosos radicais protestavam.
Questões de ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, referem-se à garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão. Enquanto houver voto religioso, mulheres reais morrem porque esses políticos que tem o dever de debater e promover políticas públicas para assegurar seus direitos fundamentais, chantageiam com suas vidas. A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada, pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa decisão individual só assume uma dimensão de saúde pública na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha respeitada. A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal. E todos os dias mulheres de todas as religiões fazem abortos no Brasil.
Aborto precisa ser enfrentado com seriedade
Não é só a questão de ser a favor das mulheres que fazem, mas de assegurar seu direito de decidir sobre a própria maternidade, bem como, garantir sua saúde, porque mesmo nos casos em que o aborto já é permitido no país - gravidez por estupro, gestação de feto anencefálico, muitas mulheres têm morrido, por não serem assistidas pelo Estado. Infelizmente, o direito ou não ao aborto no Brasil, é uma questão de ter ou não dinheiro para fazê-lo em condições seguras. Todavia, na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres o direito os meios para ter sua escolha respeitada, a questão do aborto no Brasil, se não diz respeito apenas à saúde pública, é também de saúde pública. E uma das mais sérias!
Foto: George Cambeiro / Caramuru Fotografia
Porém, nos debates políticos, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre a nossa sociedade. Isso só prova o quanto o debate político é rebaixado no Brasil. Afinal, num debate político é mais importante saber claramente como os candidatos à presidência vão cuidar das mulheres que morrem porque o aborto é criminalizado no Brasil, do que saber o que cada um deles, fará diante de uma escolha de ordem moral e privada em suas próprias vidas. Tratar o tema com olhar de voto religioso só revela também o quanto o Estado brasileiro ainda é frágil diante da pressão das religiões. Por outro lado, vale ressaltar que as igrejas têm o direito de defender comportamentos morais para os seus fiéis, mas não podem impor suas prescrições ao conjunto dos cidadãos brasileiros.
O Estado laico deveria zelar para que os limites não fossem ultrapassados, mas na prática, ao transformar o aborto em moeda eleitoral para faturar o voto religioso, a democracia escorre pelo esgoto. A crença ou não crença religiosa de cada candidato só diz respeito ao eleitor se essa crença ou não crença interferir na garantia dos direitos fundamentais de quem fará escolhas diferentes no âmbito da sua vida privada. Os políticos eleitos pelo povo governam para assegurar os direitos fundamentais de todos – os que fariam a mesma escolha moral que eles e também os que não fariam. A coerência dos candidatos, assim como seu comportamento diante de temas espinhosos, mas de extrema importância, revelam como cada um deles vai atuar quando tiver o poder. Se a campanha eleitoral de 2018 superar as anteriores, na chantagem com temas que dizem respeito a vidas humanas – e isso num momento em que os brasileiros nas redes sociais exigem maior participação na política e maior responsabilidade daqueles que foram eleitos para cargos públicos – será um retrocesso a tudo que diz respeito ao “empoderamento da mulher” e assombroso como um todo, principalmente na questão de saúde pública.